Existem coisas que
ficam martelando na cabeça da gente de um jeito chato pra caramba. Trabalho em
uma empresa de grande porte; sou bem pago, muito bem sucedido e sou casado,
sim, casei-me faz muitos anos, com outro cara, exato, sou gay e daí? A
sociedade ou parte dela não nos aceita. Para muitos não passamos de abortos da
natureza, ou conforme uns adoram dizer,
aberrações. Mas eu tô pouco ligando, ando de cabeça erguida e de mãos dadas com
o homem que eu amo e escolhi para viver comigo até os últimos dias da minha
vida.
É estranho sentir-se
estranho, é bizarro sentir-se diferente. E tem mais, é inexplicável se olhar no
espelho e não querer admitir algo tão nítido para muitos, se é que estão me
entendendo. Como eu contei para os meus pais? Na verdade eu não contei; não em
principio. Primeiro procurei uma amiga. Pelo telefone inventei uma história
qualquer e marcamos de nos encontrar. Estava uma tarde ensolarada e escolhemos
um parque no centro da cidade. Esperei-a sentado num daqueles bancos de cimento.
Quando ela chegou desliguei o celular e o enfiei no bolso. Abraçamo-nos e
ficamos ali, por mais de meia hora jogando conversa fora, rindo a beça, feito
dois desvairados.
- Quer me dizer alguma
coisa? – Perguntou essa amiga. Fechei os olhos e baixei a cabeça. Naquela hora
não tive coragem de olhá-la nos olhos.
- Eu sou gay! –
Respondi num sussurro quase inaudível.
Minha amiga riu. Na
verdade ela gargalhou e a reação dela foi a mais incrível de todas.
- Eu já sabia. Melhor,
eu suspeitava. Você nunca falou de mulher, e quando tocam no assunto você
simplesmente foge ou desconversa. Conheço-te bem.
Para contar para os
meus pais foi um processo lento e doloroso. Primeiro eu precisava aceitar o
fato de que era um homossexual, em seguida era mais do que necessário exercitar
dentro de mim um modo de descrever meus sentimentos. Minha mãe uma senhora na
faixa dos cinquenta, religiosa e temente a Deus não aceitaria de prontidão. Meu
pai, xucro feito um touro bravo me expulsaria de casa, ou matar-me-ia, triste
sina.
Foi após um almoço em
família que eu decidi falar. Depois que todos foram embora, fui para a sala ver
televisão com eles, nada fora do normal, pois fazíamos isso todas as noites. Mas
aquela noite era diferente. Meu pai reclamando de um lado, minha mãe vendo a
novela e eu absorvido nas mensagens e nos vídeos do meu celular. Até a minha
mãe tirar toda a atenção dela daquele dramalhão mexicano chato e se voltar
contra mim.
- Você viu que o seu
irmão tá de namorada nova?
- Vi sim senhora. –
Sabe quando o coração quer pular do peito? Pois é, era assim que eu me sentia.
- Então dá próxima vez,
faça o favor de trazer uma namorada. Já estou cansada das vizinhas dizendo que
você é ‘viado’.
Respirei fundo e
disparei:
- Mas eu sou minha mãe,
eu gosto de homem. – Tentei ser firme enquanto a minha mãe desabava e o meu pai
se levantava feito um tornado derrubando tudo e me acertando um tabefe em meu
rosto. Girei e cai sentado no sofá de tecido vermelho, enquanto minha mãe
afogando em lágrimas desferia os piores golpes que eu poderia tomar em toda a
minha vida.
- Aberração do demônio!
Verme! Traste imundo! Eu jamais vou querer um filho meu se deitando com outro
macho. – A fala dela era um misto de grito com choro carregado, somado a toda frustração
por um de seus filhos não ter nascido do jeito que ela tanto desejava. Um homem
de verdade. Rodeado de mulheres e com uma namorada nova a cada semana, mas eu
não era o que ela almejava para um filho.
Meu pai ficou parado
sem entender a situação. Nem eu mesmo compreendia. Minha mãe com os olhos
vermelhos enxugava as lágrimas.
- Vá embora! Não tenho
mais filho! – Ela declarou com voz firme e decidida.
- Eu também sou seu
filho, mãe. – Minha fala era carregada de um sentimento que talvez um dia eu
consiga explicar.
- Os outros sim, mas
você não é. Foi um dia, sim, te gerei. Você nasceu. Criei você. Mas não pra ser
assim. Eu fui uma idiota, eu ‘tava’ cega. As ‘vizinha’ falando que você gostava
de se deitar com macho, e eu nunca acreditei. Agora você vem dizer que é uma
bicha?!
O coração já não
pulsava mais. Meus pés flutuavam e eu não ouvia mais as tolices que mamãe
falava. Meu pai não esboçava reação. Era como se o homem outrora metido a
machão e todo cheio de si se reduzisse a um nada.
Depois daquela noite eu
fui embora de casa. Tive abrigo na casa de amigos, pois nem meus irmãos
aceitaram o fato de eu ser um gay. Nesse período nebuloso conheci o homem que
me daria o amparo necessário para ter uma vida menos sofrível. Anos se passaram
e mamãe ficou doente, em seu leito de morte fui visitá-la. Chegando ao hospital
acompanhado do meu marido fui atingindo por olhares ruins de gente sem amor no
coração. Subi no elevador e fui ao quinto andar, quarto 125, era ali que ela estava;
na UTI.
Pelo vidro a vi de
tubos no rosto e com um aspecto magro e triste. Sua respiração era lenta e
forçada. Um dos meus irmãos se aproximou de mim e do meu esposo.
- Por que trouxe esse
cara aqui? Já não basta você?!
Fiquei com aquilo
entalado, mas não respondi. Seria perda de tempo iniciar uma discussão no nível
que as coisas estavam. Por isso decidi ir embora, peguei na mão do meu marido e
saí de cabeça erguida, aquela seria a ultima vez que eu veria minha mãe viva,
ou lutando pela vida dela. Poucos dias depois fiquei sabendo de seu
falecimento. Confesso ter sido o dia mais triste da minha vida. Mesmo com tudo
o que houve eu ainda a amava e nutria dentro de mim um desejo incontrolável de
conversar com ela, no entanto, não tive coragem. Certamente pela incerteza do
comportamento dela diante de mim. Com o passar dos anos, aquelas palavras ditas
por ela após eu me assumir, ainda machucam e muito, e doem cada vez que eu me
perco a ficar pensando nela. Recordando os bons momentos, lembro-me dela me buscando
na escola, ajeitando a gola da minha camisa antes de eu ir trabalhar, dela
dizendo pra eu ter cuidado e não arrumar confusão, do sorriso dela e de seu
abraço apertado e carinhoso.
Entretanto eu não teria
mais aquilo e pensar nisso me deixava confuso e sem chão. Hoje vivo bem e numa
casa confortável, com meu marido e filhos, os nossos cinco cachorros. Contato
com a minha família não tenho mais. Meu pai vive abandonado em um asilo, às
vezes vou visita-lo, mas só o vejo de longe. Meus irmãos se separaram, cada um
foi para um canto, não tive mais notícias de ninguém. Não posso culpá-los pelo
nível de ignorância deles, de não aceitaram o fato de terem um irmão
homossexual, e de nunca tentarem compreender que eu não sou uma aberração, mas
sim um ser humano igual a eles e com sonhos e objetivos a serem alcançados.
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