Senti o cheiro amargo e
azedo da carniça e vi no céu uma revoada de pássaros negros, eram urubus. A
poucos quilômetros de onde estava, uma criança de vestido comprido, e com um
grande ferimento na cabeça achava-se morta na beirada de um riacho cercado por belas
árvores e pedras grandes. Lá também havia uma enorme cachoeira onde as águas
desciam as rochas como um véu de noiva.
Era impossível saber
como aquele corpo apareceu ali; se por causa da correnteza ou trazido pelos
braços de algum mal feitor. Naquele lugar o silêncio só era interrompido pelo
barulho dos pássaros e pelo vai e vem de águas revoltadas e também pelos urubus
que sobrevoavam durante o dia a procura de alimento. Há abutres malditos, que
esperam calmamente por suas presas, e que comem suas entranhas e seus olhos
deixando apenas os ossos. São devoradores de corpos. Costumeiramente se
alimentam com restos de outros animais, entretanto, desta feita, a refeição
seria uma criança.
Pousaram sobre ela e em
uníssono soltaram um grite estridente. A partir daquele instante ninguém podia
se aproximar sobre o risco de sofrerem as consequências. E lá permaneceram por
mais de hora, comendo os olhos, a carne e bicando a pele, na tentativa de
rasga-la e devorar com mais facilidade suas entranhas.
Já era possível ver os
ossos, de um vermelho escurecido misturado com um roxo parecendo um hematoma.
Depois de devorado, o que havia sobrado ficava abandonado aguardando a natureza
fazer o resto.
Dias se passaram e
ninguém reclamou do corpo. Família alguma foi até as autoridades se queixando
de ter uma filha desaparecida. Em anos vivendo nessas terras jamais ouvirá
falar de humanos sendo devorados por essas aves. Eles sempre se alimentavam com os restos
mortais de outros animais, mas comer uma criança? Eu não quero mais pensar
nisso, só de lembrar eu sinto calafrios e fico com as mãos suadas de tanto
medo.
Mas esses urubus nada
fazem, são inofensivos. A função deles é de limpar a natureza dos restos, mas
um ser humano, ainda mais uma criança, não pode, sobe hipótese alguma, ser
considerada como uma sobra, o nome que quiserem colocar nesse absurdo. Minha
preocupação não é apenas com essas aves. Fico aflito só de imaginar como essa
menina foi morta. Ela pode ter sido abusada sexualmente por alguém. Deus do
céu, em que mundo nós estamos? Não existe mais respeito, nem por uma pobre e
indefesa criança?
Eu decidi voltar para o recanto dos urubus. E
lá estavam eles, com aquela postura imponente, com o pescoço erguido e os olhos
brilhando. Não havia mais corpo, restavam ali somente ossos e um cheiro
insuportável de podridão. Por que diabos eu tinha de ver aquilo? Dava-me ânsia
só ter de ver todos aqueles ossos.
Os urubus saíram voando
e só retornariam quando surgisse algo novo para comer e não demorou muito para
isso acontecer. Dessa fez foi o corpo de um menino, sem camisa e de calças, sem
sapatos, calçando somente meias; um dos pés estava furado no calcanhar. Como já
havia escurecido nenhuma ave por ali pousou, mas elas ficavam em total vigília.
Caso alguém se aproximasse e ousasse tirar a refeição elas atacariam e matariam
se fosse preciso.
No dia seguinte eu
despertei com o sol atingindo meu rosto, tentei me proteger com o braço fazendo
sombra, mas foi em vão, o brilho estava muito forte. Eram exatamente dez animais,
todos enfileirados. Um a um eles foram levantando voo e pousando diretamente no
corpo do menino. O primeiro bicou forte e arrancou um pequeno pedaço da carne;
dava para ver nos olhos daquele monstro a satisfação. Aos poucos os outros
foram se aproximando, pousando e bicando. Não sei dizer direito, mas acho que
aquilo nunca mais pararia, pois ali estavam os legítimos devoradores de corpos.
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